Problemas na construção da personagem feminina em séries de TV

Enquanto muitos empregados no campo da criação de séries de TV veem em seu trabalho a chance de se comunicar utilizando a arte, outros veem a necessidade de se adequar ao mercado e então rendem-se à caricatura enquanto constroem seus personagens. Para alcançar um maior público, esses últimos tendem a escrever certos tipos de personas de formas que muitas vezes se refletem de forma prejudicial à construção da sociedade. Essa análise busca discutir como personagens femininas são criadas e escritas em séries de TV, muitas vezes com histórias ligadas a um personagem masculino – além de serem desenvolvidas apenas para a evolução deste último na série. Além disso, a análise pretende também estudar o que essa construção esteriotipada de personagens femininas causa no público e em como esse público recebe tais personagens.

Nos tempos atuais, um número gritante de séries de TV é visto todo mês, devido à grande demanda do mercado e à variedade de serviços de streaming - como exemplo, HBO Max, Disney+, Netflix, Prime Video e Globoplay - e de canais de TV - como exemplo, NBC, The CW, HBO e Freeform. Temos uma vasta cartela de personagens que são construídas de diferentes formas; peguemos, então, alguns exemplos para buscar entender os maiores problemas na caracterização de personagens femininas.


Na série animada japonesa - um anime - Fairy Tail, temos um exemplo claro do primeiro caso analisado aqui: personagens femininas que são vendidas como protagonistas mas estão, na verdade, sob a asa do verdadeiro "personagem principal": seu parceiro masculino. No anime em questão, Lucy Heartfilia é dita desde o início do marketing da série como a grande protagonista da obra. De fato, o primeiro episódio a mostra e a desenvolve um pouco antes dos demais, mas não demora para apresentar um outro personagem - Natsu Dragneel - que viria a ser, na prática, o verdadeiro protagonista de Fairy Tail.

Mesmo que Lucy tenha sido, no início, considerada pelos produtores a protagonista da obra, desde os primeiros arcos Natsu já recebia um foco muito maior. Fairy Tail é uma obra de fantasia que se enquadra no gênero Shounen - animes que provavelmente incluirão super-poderes e lutas de variadas formas - que já é um gênero há muito enquadrado nos moldes machistas da cultura oriental. Nas lutas, então, espera-se que a protagonista do anime seja a mais proeminente quando o assunto é tempo de tela. Ainda assim, ela é ofuscada por seu parceiro masculino, que representa a maior parte das batalhas. Mesmo que também seja uma lutadora, Lucy é, na maioria das vezes, a personagem a ser salva e aquela que sempre precisa de ajuda dos demais. Com o tempo e desenvolver da série, os produtores começaram a aceitar seu verdadeiro protagonista e então basear o marketing não só em Lucy, mas também em Natsu.

De fato, em alguns arcos do anime, Lucy é a personagem mais desenvolvida. Ela é o "sentimento", a "união" e a "alma" da obra, mas em um anime cujo gênero busca focar na ação, não há espaço para Lucy ser realmente a protagonista quando existe um outro personagem que batalha muito mais que ela. Essa é uma concepção vista em muitos outros aspectos em séries de TV, onde personagens femininas são vistas como o veículo para o sentimento mostrado na obra. Ainda assim, é um caminho muito fácil e muito caricato colocar a personagem como o "coração" da série, mas então dar a ela pouco tempo de tela e um escasso desenvolvimento próprio. Uma personagem ser construída dessa forma muitas vezes significa que ela pode e será usada como escada de evolução de um personagem masculino - entremos, então, no próximo tópico:


Game of Thrones é uma das séries mais assistidas da história e que com certeza mudou a forma como muitas outras depois dela foram construídas e desenvolvidas. Daenerys Targaryen é uma das protagonistas da obra e uma das personagens mais importantes nela. Em oito temporadas, Daenerys foi uma personagem que passou por diferentes vivências para que chegasse em seu estopim - o que os produtores sempre planejaram para ela - mas no fim, ela sofre nas mãos dos roteiristas a ser reduzida apenas àquela personagem que se perdeu e que precisa ser parada pelo protagonista (um homem).

Daenerys tem toda a sua jornada basicamente jogada fora quando ela encontra um fim destinado à evolução de uma outra figura na obra, Jon Snow. Sem muitos spoilers claros, a Mãe dos Dragões passa por mudanças gritantes de caracterização na última temporada para que os roteiristas chegassem ao espaço que desejavam, o que indubitavelmente ignora todo o poder e representação que a personagem possui na cultura pop como um todo. No fim da série, Daenerys não é mais sua própria personagem com seus próprios arcos, mas sim a escada para que os outros personagens - como o já citado Jon Snow e também Tyrion Lannister - se desenvolvessem e para que seus arcos fossem fechados ao preço do decair da mulher.

É um fechamento infeliz para uma personagem que passou por muita coisa na obra, e que merecia um final não necessariamente feliz, mas que chegasse ao menos perto da grandiosidade que seu nome tem tanto na série quanto no mundo do entretenimento como um todo. Curiosamente, o desenvolvimento de Daenerys se perdeu exatamente quando os roteiristas fizeram dela um par romântico de Jon Snow - por isso, entremos em nosso próximo tópico:


A série Arrow, do canal The CW, é uma série de super-heróis que sofre para fazer um bom encaixe entre ação e drama. Poucas de suas personagens femininas têm realmente um bom desenvolvimento e a maior parte dele vem quando a personagem faz par romântico com o protagonista masculino. Laurel Lance é inicialmente o que se chama de "leading lady" da série, isto é, a personagem feminina de mais destaque. No começo da obra, ela é a personagem por quem Oliver Queen, o protagonista, está apaixonado e por isso, ela recebe bastante destaque. Passando por temporadas iniciais onde ela aparecia bastante, Laurel dificilmente era colocada em outros arcos que não fossem seu arco romântico.

Em certo ponto na série, os dois personagens deixam de ser um casal e o protagonista se envolve com outra personagem. Coincidentemente, ou nem tanto, Laurel instantaneamente perde foco e a outra personagem do arco romântico se torna a nova "leading lady". É normal que, em uma série cujo foco também se pesa no romance, os personagens envolvidos no casal principalmente tenham bastante reconhecimento por parte do roteiro. O que não é saudável é justamente quando as personagens femininas parecem ter somente essa história, não passando (ou passando em um nível muito baixo) por outros problemas na vida que não têm âmbito amoroso. O decair do protagonismo de Laurel é tanto que ela vai de protagonista feminina a figurante em um certo ponto na série, até ser enfim retirada do núcleo de personagens.

Personagens femininas serem retratadas como importantes apenas enquanto se envolvem com o protagonista é um problema visível há tempos em muitas obras, o que, em entrelinhas, dita que "mulheres só importam enquanto têm o papel de levantar o homem", criando a imagem de que elas não possuem história, poder ou desenvolvimento próprio.


Como essas construções se refletem no mundo real?

Com o aumento do envolvimento da população com o entretenimento, os veículos de comunicação e lazer se tornam parte importante da sociedade. Muitas pessoas tomam como base o que veem nas obras para desenvolverem suas ideias e pensamentos sobre assuntos da vida real. Uma personagem feminina ser esteriotipada das formas discutidas pode gerar no grande público uma imagem de que esses são os papeis principais de mulheres em uma comunidade, diminuindo seu propósito.

É importante, enquanto consumidores, lutarmos contra os paradigmas que colocam não só mulheres, mas também outras minorias, em locais de pouco desenvolvimento e importância. Com o passar dos anos, o entretenimento se torna cada vez mais influente na grande massa, e a forma como os personagens e as situações são descritos (as) tem grande poder sobre seu público. O entretenimento é um reflexo da realidade, mas temos que nos manter na luta para que o contrário não aconteça e para que a realidade não seja baseada nos moldes caricatos do entretenimento.

Acompanhe uma reportagem dissertativa realizada sobre esse assunto, com inclusão de entrevista!

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